É certo que o amor
começa quase sempre pelo mesmo mecanismo perfeito, preciso, inexplicável que
organiza o reencontro inesperado de dois velhos conhecidos numa cidade com seis
milhões de habitantes. Do nada. Nasce com a impertinência de uma espinha no
rosto da debutante, da noiva ansiosa, da madrinha solteira. No descabimento de
um espirro durante o orgasmo, o amor também dá o ar de sua graça. Surge como
visita inesperada, resfriado, bolada na praia, multa de trânsito, mamangava,
maria-fedida, vagalume, conjuntivite, cabelo branco em adolescente, flor no
asfalto, passarinho em escritório.
Sem aviso, o amor
rompe a membrana tênue que separa as coisas elevadas, impossíveis, da vida
corriqueira e seus acontecimentos rasteiros. Dá as caras à toa, sem mais, como
alguém que vai ao mercado, o despertador que não toca, a moça que acorda com
raiva, o pobre que acerta na loteria, o tombo da patinadora. Porque o amor
pertence à insuspeitada categoria das coisas imprevisíveis. O amor vive no
terreno do imponderável. É ali que ele respira, ali ele espera, invisível, seu
tempo fortuito e incalculável de vir a ser.
Ah… o amor que
adora despertar no desencontro absoluto e na coincidência escandalosa dos
números inacreditáveis, na história improvável da moça que passa sete anos
sozinha e, dois meses depois de engatar um namoro assim-assim, encontra um moço
que viveu os mesmos sete anos casado e há dois meses — os mesmos e
inacreditáveis dois meses — encerrou mais uma entre tantas tentativas de amar e
ser amado. É, o amor também principia em desarranjo e escárnio divino.
Então, uma vez
iniciado, o amor vive sua maior peleja: o meio. Porque difícil não é o começo e
nem o fim do amor. É o meio, o que existe entre um e outro lado da história,
entre a capa e a contracapa, a frente e o verso. O morno que um dia foi água
pelando e no outro será gelo e indiferença. A segunda, terça, quarta e quinta
feiras de todo amor.
Quando chega ao
meio é que o amor se põe à prova. E só sobrevive a esse terreno esburacado e
enganoso o amor dos amantes operários. O amor trabalhador. Porque é de subidas
dolorosas, descidas traiçoeiras e retas sonolentas que se compõe esse
meio-caminho.
Quem aprende a
ficar e se manter de pé, a cair e levantar nesse território impreciso vive o
amor em sua face mais primorosa. O amor parceiro de quem se sabe disposto a
caminhar rumo ao inferno para estar ao lado do outro, ou na frente, ou atrás.
Porque só quem sobrevive às trevas há de entrar no paraíso.
No meio do amor, é
preciso perder o medo de se arrebentar inteiro no campo minado do dia a dia.
Ali, os casais caminham com cuidado para não pisar em nenhuma mina, ora
sabendo, ora não, que se um o fizer os dois serão atingidos na explosão, tão
perto estão um do outro.
A quem supera essa
fase é reservado um regalo sublime, bônus do exercício maravilhoso de amar: as
lembranças. Vagas e adocicadas lembranças de longas conversas tarde da noite,
ouvindo a cidade dormir lá fora. As memórias de viagens e festas, sábados de
cinema, domingos de churrasco, segundas a sextas de trabalho, planos e sonhos.
As reminiscências, tão sublimes quanto os instantes que as originaram. Afinal,
seja qual for o tamanho do meio, um dia o amor chega ao fim.
Nesse dia, a
decência dos amantes é medida pelo tamanho de seu desprendimento e de sua
capacidade de engolir o pranto e dizer “adeus, seja feliz”. Porque só merece as
dores e as delícias do amor aquele que um dia saiba deixar o outro ir em
frente. E que aprenda a estar só novamente e a guardar a dor consigo até a dor
passar, como as antigas personagens de desenho animado que engolem bananas de
dinamite acesas.
No amor, que
também ama a lógica, depois do começo e do meio vem o fim. Tempo em que ele se
arrasta entre migalhas, restos e sobras. Como o guaraná que perde o gás, a
cerveja que esquenta, a goiaba que passa do tempo e deixa a casa inteira com
cheiro de quintal, é certo que o amor também acaba como começou. Do nada. Em
nada, como uma estranha sombra pálida e triste, sinal agudo de que seu tempo já
foi e de que é hora de seguir em frente para, tomara Deus seja logo, começar
tudo de novo e de novo outra vez.
André J. Gomes
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Beijinhos
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